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João Barros

Diários de Nova York


newsroom

Acervo pessoal


“So we beat on, boats against the current, borne back ceaselessly into the past.” (The Great Gatsby, Scott Fitzgerald)


O ritmo do outono, o nascimento da tragédia


Então você sai, depois de almoçar em um restaurante halal em que não sabia que o apimentado era apimentado mesmo, apimentado pra burro, e acaba não aproveitando direito a experiência de um fast food sagrado, e vai para o museu caçar arte moderna e contemporânea, mas então você se perde por horas em estatuária grega, em monumentos fúnebres egípcios, e se emociona com tudo aquilo, e nem sabe se a vida fará mais sentido depois de ver o sublime tão de perto, de se apaixonar pelo sublime, de ter filhos com ele, de tocar o túmulo de uma entidade. Você segue caminhando, meio perdido, e então encontra o que procura. Rothko e Pollock, lado a lado, como dois fantasmas. Pollock logo com Autumn Rhythm, o primeiro quadro dele que viu na vida em um livro de colégio. Love at first fucking sight. Como eram bons aqueles livros. Você fica lá, todo emocionado de novo, engolido por aquela imensidão, estatelado nos bancos enquanto ouve um casal de jovens idosos tentando recordar como Pollock havia morrido e então sente o trágico de Rohtko.


It was a car accident, fala com indiscrição, enquanto pensa que há uma ponte que carrega o passado.


Impressões infinitas


Há sempre um incêndio por aqui. Sirenes de bombeiro. Reformas em calçadas. Estruturas de obras em andamento. Carros de polícia aflitos. Fumaça dançando próxima a hidrantes como gêiseres do verbo submerso. Espasmos de caos no velho paradigma da metrópole: forma, ordem, rompida como margem, como espasmo, como um grito engolido.


Missas em espanhol na catedral próxima ao hostel. Famílias conversando em italiano enquanto esperam o sinal fechar. Primeiras, segundas, quintas gerações de norte-americanos com raízes africanas, latinas, hispânicas, mediterrâneas, germânicas. É pouco e óbvio falar que Nova York é uma cidade de imigrantes (como é pouco e óbvio falar que São Paulo é uma cidade de (i)migrantes): os imigrantes são os olhos do cosmopolitismo, suas mãos, costelas, torso, alma híbrida. Stuart Hall, o quanto baste.


A violência econômica é lembrada, eventualmente lembrada, a partir da violência absurda que faz com que homens durmam em estações de trem e outros quebrem costelas de desavisados. Tentamos, seguimos tentando, estamos tentando. Bukowski disse não tente. So what?


Na entrada dos museus, camisetas com Kamala Harris descendo o cacete em Donald Trump.


Nova-iorquinos e residentes de Nova York, à primeira vista, são prestativos e distantes, algo que agrada introvertidos dados a generalizações sem senso geoespacial. Crianças jogam futebol e adultos jogam beisebol no Central Park. Fascínio geral por bandeiras.


Todos os poodles que viviam em São Paulo nos anos 90 vieram parar em Nova York. Alguns ficaram gigantes, infinitos.


Hoje esquilos foram vistos. E patos. E alces em forma de ídolos. E os pombos seguem com a sincronia impressionante de seus voos em bando. São graciosos, os esquilos e os patos; são essenciais, os cachorros; fico sem palavras diante da beleza do voo dos pombos; alces se tatuaram em mim.


Hoje também foram vistas abóboras e dinossauros. Tudo é infinito.


No começo, havia o acaso


Sigo tentando entender minha relação com as artes visuais destas bandas. A explicação do imperialismo cultural e de conceitos correlatos, ainda que com fundamentos evidentes, é incompleta e se perde em sectarismos quando entram na dança a pintura, a fotografia, o cinema autoral. Que eu me lembre, ninguém foi bombardeado de Dorothea Lange nas esquinas por onde escorreguei.


Eu não fui ao menos, bem queria, mas não fui. De todo modo, antes dos americanos, dos brasileiros, dos estudos culturais, dos refrigerantes de gengibre e do universo, havia o acaso e isso talvez sirva para explicar tudo.


Em “Dada: arte e antiarte”, livro que li com todo o amor possível nos anos tortos da filosofia, Hans Richter analisa o papel do acaso (e do anti-acaso) no dadaísmo. Dadaísmo que me foi o movimento primordial, o amor da juventude. Duchamp e o primeiro beijo. Picabia e o primeiro porre. Man Ray e a destruição.


Porque depois do Dadaísmo, tudo se explica e tudo se abre. Que haja fome por expressionistas abstratos megalomaníacos, por fotógrafas que caçam rastros, pelo vulgar tornado sagrado e tornado vulgar no pop, deixemos na conta do acaso para não entrarmos nas coisas do espírito por hoje.


C'est la littérature


Com toda a beleza dos museus, foi a literatura que me trouxe aqui. Visito o prédio em que vivia Frank O'Hara, que escrevia cartas íntimas para estrangeiros, em um diálogo impossível e mais belo do que todos os cavaleiros poloneses. É o mistério que me atrai em O’Hara. O mais belo entre os belos. Por ele tudo faço. Com ele tudo posso. Seu andar fica em cima do que hoje é uma padaria glúten free. Estava fechada. Era noite.


O prédio contrasta com a suntuosidade elegante da casa de Capote, o mártir de si mesmo, cujo clássico maior que a vida lhe tirou a leveza e cujo quarteirão onde vivia, diz me uma senhora cujos pais, judeus imigrantes, vieram da Rússia em tempos de um mundo outro, tem os aluguéis mais caros do Brooklyn. Fica num cruzamento com uma rua chamada Abacaxis e eu só consigo pensar, diante da lembrança da decadente boemia do East Village, em como, Dorothy, é mesmo constrangedor ser poeta.


Passo pelo prédio da infância de J.D. Salinger e me perco na vista do vão que dá para os blocos em que ele pode ter corrido imaginando campos de centeio. Foi onde toda esse vínculo maluco começou. Nada original, I know, mas ele segue aqui comigo, como um modelo, como a forma do conto perfeito, o balanço que, na narrativa, sigo procurando feito um adicto.


McSorley’s, melhor sanduíche que comi em Nova York, infinitamente superior que os insípidos cachorros-quentes e cujos relógios centenários inspiraram pelo menos um dos melhores textos de Joseph Mitchell, gênio tímido do novo jornalismo cuja justificável culpa o meteu em um bloqueio digno dos anos de isolamento de Salinger.


Que toda culpa se perdoe, com a graça de Didion, o olhar mais profundo entre os olhares profundos, que viveu seus últimos anos em um prédio sóbrio de porteiros gentis e quem definitivamente transformou o jornalismo, um ofício vadio, em arte maior.


Escrevo com pressa, antes que a bateria acabe, do café do Chelsea. Lou Reed e (creio) Television passaram pela playlist do bar. Depois, com a chegada de grã-finos que, aos poucos, encheram o salão de burburinho, não consegui mais ouvir. Antes da pressa, um pain perdu, dois cafés. A mulher à minha frente lembra-me Catherine Keener. Passo por ela na saída pois a bateria acaba. Ela sorri pra mim como se fosse Catherine Keener.


Termino o texto na biblioteca pública de Nova York. 16h25. À minha frente, uma senhora faz palavras cruzadas como todos os velhinhos e velhinhas de todas as bibliotecas do mundo.


O céu do Harlem, a saudade dos cães


God bless you, diz o homem que lê Brave New World e fica me olhando com curiosidade por alguns segundos. Parece fazer leitura dinâmica, com o dedo correndo por sobre as palavras como uma máquina de escrever de um cocainômano. Como os dedos de um beat. Um amigo de Natal disse-me uma vez que Wilde fazia leitura dinâmica. Nunca comprovei, mas com aquele raciocínio afiado, bem podia ser. Gosto mais dos aforismos de Wilde do que de sua literatura. Simpatizo com o homem com dedos de beat e alma de presbítero – como, aliás, a alma de todos os beats.


Beat. Bebop. Boom. Cool cool cool and just a little bit of blues. Não há nada como o Harlem. 20 ou 30 turistas com uma sorte dos diabos acompanham por uma hora e meia Bill Saxton em seu templo e com seu trio de músicos com fome de ritmo, desenhando círculos de exegese de clássicos do jazz (incluindo uma interpretação furiosa da leitura de Estate de João Gilberto) e suas próprias composições como um trem elegante de rotas imprevisíveis, mas que nunca descarrilha, sempre esta lá no fim e no começo e no agora, feito os deuses.


Ainda uma última parada em museus de arte, com o céu todo feito de Hoppers do Whitney e um Guggenheim tímido – algo que surpreenderia Mme. Peggy, penso –, mas é justo afirmar que Picasso sai mais interessante dessa viagem e muito graças ao acervo do museu de seu tio que estava com seus caracóis fechados para conversa.


Chinatown. Little Italy. La force. Somos todos imigrantes. Em todos os lugares. E em todos os lugares há beleza e pessoas esperando.


Guardo o voo dos pombos. Rezarei para os ratos que correm nos trilhos dos trens. Para os cachorros que também caminham com suas patas encolhidas. Pelos pobres que enlouquecem nos metrôs com o peso do declínio dos impérios do capital. Pelas pessoas em sua graça. Pelas pessoas em sua queda.


Em todos os lugares há pessoas. Pessoas esperando – alguma paz, o afeto dos seus, Godot.


Enquanto isso, hoje já é amanhã e já é amanhã também no Cambuci. Tenho saudades dos cães.

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