Acervo pessoal
Vila Mariana, Rua Berta, a estrutura sacra de capela da Cinemateca, Lasar Segall e as casas que parecem irmãs
Por vezes, a falta de diálogo da arquitetura de São Paulo me incomoda em todo o seu poder de aniquilação. Uma cidade em que a ideia de pertencimento possível está no refúgio. Não é possível permanecer inteiro diante da cacofonia de São Paulo, que consegue ser bela e horrorosa e terrível e estéril e provinciana e iluminada e sanguínea e perspicaz e fúnebre, como um oráculo coberto por véus. É possível contemplar a incoerência aberrante, o canto atonal de pássaros-ornitorrincos, do mesmo modo que é possível perceber a tessitura de um fetiche ou ouvir agulhas caindo em um chão de cozinha, talvez vermelho, e intuir o risco. Mas a contemplação inteira é um movimento harmônico – seja ele sublime, aterrorizante, duro ou sereno.. Por isso, em São Paulo, quando se tem sorte, refugia-se em um bairro, muitas vezes em uma quadra de um bairro ou mesmo em uma única rua – que, se muito longa, pode resumir sua harmonia a uma esquina, a uma calçada antes de curvas em direção ao caos, a uma calçada de casas que parecem irmãs. É razoável ser bairrista em São Paulo. Mais do que razoável, é humano.
A rua Berta, do Museu Lasar Segall, é plena na clareza do pertencimento que carrega. Com uma timidez convidativa que começa no nome, Berta, e que se estende pelas casas de três pisos em frente ao museu que guardam tapetes e jardins breviloquentes que parecem epítomes seguras de si, e carros velhos e calmos e segredos contidos que bem abrigariam funcionários públicos inteligentes e possivelmente bonitos, a rua é um lugar em que se pode esperar e morrer e viver por todo o sempre. Seu espírito é feito de valsas de Vivaldi.
Depois de passar no Lasar Segall – que deve ser o museu mais inabitado de São Paulo e por isso o mais feliz, de uma felicidade meditativa e tímida como toda felicidade que não transborda para a estupidez –, caminho pelas ruas, agora já atonais e desconexas, de outros trechos da Vila Mariana. E todo lugar esconde tesouros, mesmo quando não está circundado por beleza. Um mercadinho com óleos perfumados gerido por um homem de meia idade oriental de tatuagem misteriosa e cabelos que se estendem até os ombros e franja falha no qual compro cigarros e chicletes sem açúcar. Um ateliê em que uma moça trabalha com olhar reflexivo cuja escolha de cores da entrada é muito precisa. Um pombo se alimentando com rara paz, sozinho, em uma calçada em que o cinza vira verde musgo e cinza. A estrutura sacra de capela, que nunca havia reparado direito, da Cinemateca. Tudo é sagrado mesmo e a beleza é o próprio tesouro.
O Lasar Segall sempre me comoveu e que sempre me remete às vidas passadas, hoje, me fez pensar em Joseph Roth. “Primeiro entrou um homem pequeno e magro, em cujo rosto o nariz assentava como um elemento estranho e muito surpreso; era um nariz impertinente, insistentemente inquisidor e, todavia, comovente e ridículo…”
São quase 20h10. Fazia tempo que não vinha à Cinemateca. Sinto saudades do tempo em que vim pela última vez e talvez sinta saudades de hoje, em que também vi pavões em gravuras e espero. O mistério é irresistível.